Excerto: "Estou no cimo de uma serra, estou no céu, ou se calhar voo pelos ares de asas abertas numa nuvem sem borbotos, e vai-se a ver estou a nadar no mar alto sem ter fundo, que ao fim ao cabo isto vai tudo dar ao mesmo: uma grandessíssima arrelia. Não se enxergava uma polegada britânica à frente do nariz, com os cristais de gelo sobre as pálpebras parecia que nem o próprio nariz se via. E é isto vir de férias nesta ilhota do mar do Norte. Desde as sete da manhã que escalávamos com ardor, suados que nem mulas de carga apesar do feroz briol. Arre que isto não é clima de gente, nem de bicho ou alimária! Só mesmo pela íngreme subida acreditava no que me iam dizendo: que não era aquilo um mar de nevoeiro, nem a morada de deuses indistintos, mas sim a cachola de uma montanha. E porque a escalávamos? “Because it’s there.” Porque a montanha para ali estava, a pobrezinha, e infelizmente há gostos para tudo.
Antes chovera. Chovera gatos e cães, como eles dizem. As ramelas matinais haviam sido lavadas au naturel. Estava tudo empapado, ensopado, o chão era mousse de chocolate, da ralinha. Um ou outro bate-cu deixara marcas, puramente cosméticas, nada de grave. Não chamem ainda a ambulância que lá haveremos de chegar.
Depois veio o ciclone. Vento forte, turbulento, até aventou comigo para o chão, as fuças bem enterradas pelos barros. Estou todo enlameado, cara e tudo, pareço um soldado saído das trincheiras, que isto é mesmo uma guerra contra os elementos, contra os zéfiros, as águas celestes, contra a fúria do Espírito da Montanha! Isto (note-se bem) para mim; para eles, para os indígenas, trata-se apenas de mais um belo dia de lazer, antes do vomitório no pub logo à noite. Um dia bem passado.
Mas agora o vento apaziguou-se e a chuva quase parou, o que fez com que condensasse este nevoeiro espesso, catarral, e a temperatura descesse ao ponto dos pingos no nariz se terem tornado estalactites.
Ao longo da manhã a minha companheira de viagem mantivera uma irrepreensível boa disposição — “Ah... this is the life” — tão bom que é passear à chuva e ao vento, e vinha portanto proporcionando um chorrilho ininterrupto de piadas que até eram engraçadas, típico sentido de humor inglês. Eu é que não estou para graças, “foda-se para isto” dito repetidamente e em português marca o limite da minha eloquência. Meu rico Alentejo que trago no coração, ir às conchinhas nos areais, comer um cacho de uvas na modorra do Verão, alarvar com uma açorda e passa daí o garrafão. Os gracejos da minha companheira de viagem não me penetram os ouvidos, de tal forma me vou enrosquilhando no conchego deste mar interno de fantasias.
Quando finalmente assomamos aos cimos desta serra, a minha companheira de viagem diz-me algo mais severo, mas já lá não estou. Estou a comer carapaus assados na brasa em Sesimbra, papas de serrabulho na Póvoa de Varzim, uma cataplana em Santa Luzia."